O início das grandes crises sempre coincide com a falência de uma grande empresa, por incompetência da gestão ou fraude do balanço. Em Setembro de 1929, um mês antes da quinta-feira negra, Clarence Hatry foi preso e acusado de emitir ações fraudulentas de suas empresas. Hatry era dono de um dos maiores conglomerados industrial da Inglaterra, que tinha de uma mineradora a uma fábrica de máquinas fotográficas, e a pouco tempo havia feito uma oferta de aquisição da US Steel, líder do setor siderúrgico americano, a um preço acima do mercado. Para financiar a aquisição, Clarence emitiu ações que já estavam em circulação e deu-as em garantia para empréstimos, fraudando o patrimônio do grupo e ocultando a situação falimentar. Com a sua prisão, as ações do grupo Hatry foram dizimadas, assim como a US Steel, o que é tido como a origem da crise de 1929.
Outro episódio icônico foi a falência do banco Lehman Brothers em Setembro de 2008, no meio da crise do subprime. Diferente dos outros, esse foi causada por má gestão. Nos 3 anos anteriores à crise, buscando aumentar o retorno sobre o patrimônio líquido do banco, os administradores contraíram empréstimos e investiram em títulos hipotecários, como o subprime. Quando o mercado imobiliário entrou em queda, investidores e clientes começaram a questionar a solidez do ativo do banco, o que gerou uma crise de confiança, que levou à derrocada da Lehman.
Estes eventos estão diretamente associado às crises que estavam em curso ou se sucederam, e têm dois pontos em comum: as empresas tiveram suas fraquezas expostas com a mudança das condições econômicas, e estavam alavancadas . Hatry não conseguiu financiar a compra da US Steel pois o FED havia subido juros, e as economias americana e européia davam sinais de fraqueza, o que deixou banqueiros mais cautelosos. Alguns anos antes, teria levado à cabo a operação com sucesso. A Lehman foi à falência em função da queda dos títulos imobiliários, que acompanharam a perda de valor dos imóveis nos Estados Unidos, em queda a dois anos depois de subir nos últimos quinze. Nos dois casos as empresas haviam contraído muitas dívidas, estavam excessivamente alavancadas, e foram surpreendidas com a mudança da economia. Eventos como esse não causam as crises, mas são sintomas da dimensão que ela atingiu.
Ontem tivemos o primeiro caso de empresas alavancadas, que são fundos de investimento, sofrendo sérios problemas de liquidez, causado pelo Brexit, resultado que surpreendeu a todos. Três dos maiores fundos imobiliários da Inglaterra, que somam 9.1 bi de Libras, suspenderam os resgates depois que a fuga massiva de capital pós-referendo deixou-os sem caixa. Estes fundos, geridos pelas firmas de investimento M&G, Aviva e Standard Life, investem majoritariamente em propriedades comerciais, e os alugueis são o rendimento. Para devolver o principal aos cotistas, o fundo precisa vender as unidades comerciais que possui, um processo demorado. Para não precisar vendê-las a qualquer preço, os administradores suspenderam os resgates dos fundos, que têm grande alavancagem, já que pagam apenas 30% de entrada no imóvel, e financiam os outros 70%. Os fundos da Aviva e da Standard Life carregavam 9% e 13% do patrimônio em caixa antes dos resgates começarem, respectivamente. Isto diz quanto patrimônio perderam em pouco tempo.
A operação destes fundos é simples, mas é intrigante como conseguem tomar financiamento, comprar imóveis, alugá-los, pagar a taxa de administração, e serem rentáveis. Para esta arbitragem funcionar os alugueis na Inglaterra precisam ser especialmente altos, ou as taxas de juros extremamente baixas. A segunda hipótese, presente atualmente, diminui o custo da dívida, e também a rentabilidade exigida pelos cotistas do fundo. Atualmente a taxa de juros na Inglaterra é 0,75% e deve ir a zero, o que é um suporte para essas operações. Por outro lado, a fuga de capitais pode pressionar o mercado de imóveis comerciais, que viu preços caírem mais de 40% na crise de 2008, o que pode levar os fundos a terem perdas na venda dos imóveis, derrubando as cotas, o que provocaria novos resgates, gerando um círculo vicioso como visto no mercado imobiliário americano na crise do subprime. Estima-se que até 45% destes fundos têm capital estrangeiro, que está saindo da Inglaterra com o temor da Libra se desvalorizar ainda mais.
Neste caso não estamos diante da falência de uma grande empresa e nenhuma fraude foi descoberta, mas estamos vendo o primeiro caso de iliquidez em fundos de investimento, o que demonstra a intensa fuga de capitais que atinge o sistema financeiro inglês. Por este motivo, e pela sinalização do banco central que irá cortar os juros, a Libra atingiu novas mínimas ontem. Chama atenção a alavancagem de quase 3 vezes, o que pode ter efeito devastador para os cotistas, já que uma queda de 30% nos imóveis levaria o patrimônio deles para perto de zero. Assim como acontece com bancos, a perda de confiança do cliente no fundo leva a resgates que, nesse caso, podem levar a crise no setor de imóveis comerciais. Este é o primeiro choque visível na economia causado pela intensa fuga de capitais, e certamente existem outros. É difícil prever aonde serão os maiores danos, e quanto mais durar a fuga de recursos do sistema financeiro, piores serão as consequências. Por isto a situação destes fundos chamou a atenção, é o primeiro sinal de algo muito pior pode acontecer
Ainda não vemos motivos para mudar a carteira, que foi fortemente atingida pelo movimento de aversão a risco, desencadeado pela notícia dos fundos. Porém, estamos atento ao desenrolar do Brexit, e coletando os sinais com atenção. O maior temor é o stress financeiro atingir um nível que o Banco Central Inglês não consiga controlar e combater. Ao primeiro sinal do aprofundamento da crise, a carteira será revista. Por ora, entretanto, as medidas adotadas pelo Bacen estão surtindo efeito, e o stress parece ter se limitado ao dia de ontem.