Há duvidas no mercado se a política econômica do novo governo seguirá a mesma linha pragmática de 2003. Contudo, parece haver poucos graus de liberdade para colocar em prática políticas fiscais heterodoxas. A oposição política será grande, o ambiente macroeconômico desafiador e uma aventura nesse sentido não deverá ter apoio do Banco Central. É possível assegurar trajetória sustentável da dívida pública se a flexibilização do teto de gastos for bem calibrada. Fugir disso tornaria a vida do governo muito mais difícil no resto do mandato, com aumento da inflação e queda do crescimento. Não parece complicado de entender.
Terminadas as eleições, sobra ansiedade em relação ao rumo da economia nos próximos anos. O novo governo será capaz de conciliar responsabilidade social e fiscal como prometeu de forma vaga na campanha? Na data que escrevemos, as duas perguntas mais imediatas são qual será o tamanho final da “licença para gastar” (waiver) no próximo ano e quem sentará na cadeira de ministro da fazenda. Espera-se que as respostas iluminem uma questão mais fundamental: a política econômica seguirá a linha pragmática do primeiro governo do PT (2003-2006)?
Naquela ocasião, acertaram o diagnóstico. Havia muita desconfiança dos mercados com o governo recém-eleito, agravado por uma situação frágil das contas externas. A valores de hoje, a taxa de câmbio chegou a bater os R$8/US$. O entendimento do novo governo foi de que seria necessário prover um “choque de confiança” ao mercado. Para isso, seguiram a risca o receituário “neoliberal” que tanto havia sido criticado. Gastos foram cortados, impostos aumentados e até aprovaram uma reforma da previdência do funcionalismo público naquele ano. O plano foi um sucesso e o país pode surfar na onda do crescimento chinês e boom das commodities dos anos seguintes.
Vale dizer que este não foi um caso isolado de pragmatismo nos governos PTistas. Até na era Dilma tivemos uma guinada liberal. O saldo econômico deste período foi tão ruim que tendemos a esquecê-la. Nos primeiros meses do segundo mandato, o então ministro da fazenda Joaquim Levy recebeu carta branca para implementar um forte ajuste fiscal, da ordem de 1% do PIB naquele ano. Este ajuste, no entanto, veio tarde demais e no pior contexto possível. Os preços internacionais das commodities caiam. A lava jato paralisava obras e investimentos. A necessidade de reajustar preços represados pressionava a inflação. O BC subia os juros. Os bancos públicos pisavam no freio. A crise hídrica se agravava. A base do governo derretia. E o congresso lhe presenteava com “pautas bombas”. O resultado foi o colapso da atividade econômica e da arrecadação de impostos, fazendo o resultado fiscal piorar, e não melhorar como era pretendido. De toda forma, o governo foi (ou pelo menos, tentou ser) austero quando a água bateu na cintura.
Governos não são definidos apenas pelas preferências e visões de mundo de seu núcleo político. Mas também por suas condições de contorno. Ou seja, dependem da realidade imposta pelo parlamento, judiciário, meios de comunicação, eleitorado, mercado e contexto macroeconômico, por possíveis ameaças a sua continuidade, etc. Com o próximo governo não deveria ser diferente. Já sabemos que a direita terá a maior representatividade no Congresso em mais de duas décadas, e com a pressão inédita de uma militância orgânica e extremamente engajada. Congresso este que também ganhou mais autonomia, por exemplo, via crescimento de emendas de caráter impositivo.
O governo também enfrentará importantes restrições na economia. Ao contrário do que foi o 1º mandato, terá à frente um contexto macroeconômico global mais desafiador, com desaceleração da atividade, inflação alta e aperto das condições monetárias na maior parte do mundo. A China, que cresceu em média 11% ao ano entre 2003-2006 deverá crescer algo em torno dos 4% nos próximos anos.
A recém-conquistada autonomia do Banco central será outra restrição que não deve ser subestimada. Um governo que eventualmente insista em expansão fiscal como ferramenta de estímulo não terá apoio da autoridade monetária para segurar os juros ou a taxa de câmbio (o atual mandato do Bacen vai até o fim de 2024). Uma aventura nesse sentido seria provavelmente punida com aumento da Selic e forte depreciação cambial. O efeito seria uma recessão e aumento da inflação. O tiro sairia pela culatra portanto.
Vale salientar que se havia algum espaço para afrouxar o fiscal, este espaço foi totalmente consumido pelo governo atual às vésperas das eleições. Medidas como o auxílio Brasil de R$600, outros benefícios e uma série de cortes de impostos (combustíveis, IPI e ICMS) terão um custo de cerca de 2% do PIB, ou R$200 bilhões por ano. Com isso, o próximo governo herdará um déficit primário estrutural de cerca de -0.5% do PIB. Ou seja, se não fossem essas medidas, o novo governo teria como ponto de partida um superávit primário estrutural de 1.5%, valor suficiente para estabilizar a trajetória da dívida pública no longo prazo na maioria das circunstâncias.
Felizmente o caminho para recuperar o equilíbrio não parece tão difícil. Infelizmente, no entanto, deverá envolver aumento de impostos. Se, por exemplo, forem revertidos os cortes de PIS/Cofins e ICMS de combustíveis e energia elétrica, teríamos um ganho fiscal de 1.2% do PIB. Uma eventual tributação de dividendos nos moldes do que foi sugerido pelo governo anterior poderia gerar outros 0.6% do PIB.
Pelo o lado dos gastos, é consenso que qualquer discussão sobre política fiscal envolverá a revisão da regra do teto. O crescimento vegetativo das despesas com aposentadorias (que representam mais da metade do orçamento) obriga o governo a cortar todo ano algo além para a conta fechar. Acontece que praticamente todo o espaço para corte de gastos discricionários já foi exaurido nestes seis anos de vigência do teto. Sem uma reformulação crível da regra, teremos que conviver todo ano durante a discussão orçamentária com a incerteza e o stress de se criar um “puxadinho” cada vez maior no teto.
Se o teto será revisto, vale pensar em alguns cenários e simulações para a trajetória da dívida. O primeiro chamaremos de cenário “base”. Vamos imaginar que o novo teto permita crescimento das despesas equivalente à metade do crescimento do PIB. Suponhamos que o PIB cresça 2.5% a.a em média na próxima década e que portanto o teto seja reajustado em 1.25% a.a acima da inflação por ano. Também vamos supor taxa de juros real de longo prazo de 4%. Como ponto de partida para o teto novo, vamos considerar o valor calculado para o teto antigo em 2023 acrescido de um “extra” de R$100 bilhões. Este valor seria suficiente para cobrir o bolsa família de R$600, adicional de R$150 por criança, reajuste real do salário mínimo de 2% e ainda sobraria R$20 bilhões para outras despesas. Do lado das receitas, supomos que o governo faça as reversões de impostos e tributação de dividendos que mencionamos anteriormente e que devem totalizar 1.8% do PIB.
No cenário pessimista, vamos imaginar que o novo teto permita crescimento real de 2% das despesas. O “extra” para gastos seria de R$160 bilhões. O aumento de impostos seria o mesmo do cenário base. O mercado não iria gostar da regra mais frouxa e do “extra” maior e, portanto, a taxa de juros real de longo prazo iria para 5.5% a.a. Com juros mais altos, o crescimento do PIB deveria ser mais baixo: vamos supor 2%. Como podemos notar, este é um cenário pessimista razoavelmente conservador. O “extra” seria menor que os R$200 bi que o governo aventou originalmente. Os juros reais seriam mais baixos do que os 6.2% que as NTN-Bs pagam hoje em dia. A atividade não despencaria. E os gastos ainda cresceriam em ritmo bem mas comedido do que os 5.3% a.a que cresceram entre 2003-2010.
Como podemos ver no gráfico abaixo, é gritante a diferença entre as trajetórias de resultado primário e dívida publica sob os dois cenários. No cenário base a dívida consegue convergir por volta de 2027 com uma melhora gradual do resultado primário. No cenário pessimista a trajetória é explosiva e o primário não melhora.
Figura 1: Projeções de resultado primário do setor público (% do PIB)
Figura 2: Projeções de dívida bruta do governo geral (% do PIB)
Parece claro que qualquer governo deseje começar seu trabalho em um contexto onde os investidores vislumbrem a curva azul do gráfico acima, e não a laranja. Um ambiente de menor incerteza fiscal favorece juros mais baixos e maior crescimento econômico, o que dá mais liberdade para gastar no final do governo. Causou estranheza nos mercados, portanto, as primeiras falas do presidente eleito, que pareceu ir contra a esta lógica tão simples. Ainda temos bastante dificuldade em imaginar que o novo governo tenha esquecido e não coloque em prática tal lógica.
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