Os números positivos da economia tem ficado de lado diante das dúvidas quanto ao rumos da política fiscal. Com razão. A questão não é propriamente o efeito fiscal de um ou outro bilhão a mais em gastos de infraestrutura, mas a mensagem que trás sobre o comprometimento do governo e suas prioridades políticas. Com uma dívida pública tão alta, estas expectativas fazem toda a diferença.
Os números de atividade até animaram…
Nos indicadores econômicos, continuamos a ver surpresas positivas com a recuperação no curto prazo. Os dados do varejo de junho voltaram a surpreender, com alta de +8.0% em relação ao mês anterior (MoM). No conceito ampliado, que também inclui veículos e material de construção, as vendas saltaram ainda mais: +12.6%. De fato, o efeito positivo da demanda represada fez com que as vendas de muitas sub-categorias superassem os níveis pré-crise inclusive. Este foi o caso dos móveis e eletrodomésticos, que cresceram +25.5% em relação ao mesmo mês do ano anterior (YoY) e dos items de material de construção (+22.8% YoY). Na outra ponta, as vendas de vestuário ainda sofrem com o distanciamento social, com uma queda de -44.4% em relação a junho de 2019.
Gráfico 1: Índice de volume de vendas no varejo (nivel, sa)
Por sua vez, dados preliminares para julho e agosto também sugerem que a recuperação segue ganhando tração. Para julho, o tráfego de veículos pesados em rodovias e a produção de papelão para embalagens continuaram crescendo, chegando a níveis muito próximos do pré-crise.
Gráfico 2: Indicadores de atividade (dados até julho)
Na mesma linha, os resultados preliminares das sondagens da FGV para agosto mostraram sólida tendência de alta na confiança do empresário. A indústria e o comércio seguiram como destaques positivos.
Gráfico 3: Sondagens de confiança da FGV
Em resumo, podemos dizer que a “cara” da recuperação por aqui não é muito diferente do que temos visto em outros países, onde os números de atividade tem, em geral, surpreendido positivamente. A recuperação relativamente lenta do setor de serviços, naturalmente impactado pelo distanciamento social, tem sido razoavelmente compensada pelo consumo de bens duráveis. Some a isso as perspectivas cada vez mais positivas para uma vacina e a disposição quase sem limites dos governos em prover estímulos, e temos a receita para o otimismo das bolsas no mundo.
… mas as incertezas fiscais preocupam.
Os números positivos da economia ficaram de lado esta semana diante do ruído político e das dúvidas quanto ao rumos da política fiscal. Com razão. Já não era de hoje que o mercado guardava certa ansiedade sobre como o sistema político encararia a impopular tarefa de retirar os gastos postos na pandemia. Imaginava-se que este poderia até flertar com algum populismo, mas lá estaria o Presidente, Paulo Guedes e as principais lideranças do Congresso para impedir. A austeridade prevaleceria. O que se viu, no entanto, foram sinais de que o Presidente não estaria tão preocupado assim em manter o atual regime do teto dos gastos. As falas de Guedes e do Presidente, e os bastidores reportados pela imprensa, sugerem um “racha” dentro do poder executivo sobre os rumos da política fiscal, com o presidente pendendo para o lado de que um relaxamento leve das regras fiscais não faria tanto mal assim.
De fato, pela aritmética básica alguns bilhões a mais de investimentos públicos em um ano atípico quando o déficit do governo deve ultrapassar os R$800 bilhões, quase tudo na conta do covid, não deveria causar todo esse pânico no mercado, correto? Não exatamente. O problema é a sinalização que o gesto traz sobre o comprometimento do governo com sua agenda e suas prioridades políticas daqui em diante. Como a dívida pública brasileira é muito grande, essa percepção faz toda diferença.
Um exercício simples sobre a trajetória da dívida pode mostrar isto. No gráfico abaixo desenhamos 3 cenários para a dívida pública bruta do Brasil como % do PIB. O primeiro é o nosso cenário base, onde assumimos que o teto dos gastos será cumprido até 2026, como a constituição federal afirma. Com as despesas congeladas em termos reais, apenas reajustadas pela inflação, o déficit primário do governo (aquele que não inclui pagamento de juros) melhoraria gradativamente conforme a economia cresce e aumenta a base de arrecadação de impostos. Ou seja, quanto maior for o crescimento do PIB, mais rápido as contas se ajustam. Neste caso, estamos supondo crescimento médio de 2.6% no PIB a partir de 2022, bem parecido com o consenso dos economistas no relatório Focus. Além disso, entra na conta a taxa de juros, que ditará o custo de financiamento desta dívida. Assumimos que Selic suba até 5% nos próximos anos, com uma inflação de 3% no longo prazo, ou seja, uma taxa de juros real de 2%. Vemos que neste cenário a dívida pública para de subir já em 2021 e engrena uma clara tendência de queda a partir de 2025.
Gráfico 4: Trajetórias da dívida bruta do governo geral como % do PIB em diferentes cenários
E se dessemos uma furadinha no teto? Digamos que as despesas só cresçam 1% ao ano acima da inflação, taxa bem menor do que a verificada antes da implementação do teto dos gastos em 2016. Como podemos ver na linha amarela, a dívida pública demora um pouco mais pra começar a cair, mas a diferença não é tão grande assim. Ora, então flexibilizar um pouco o teto para acelerar alguns gastos em áreas prioritárias não seria o fim do mundo! Infelizmente, esta análise está incompleta. Não assume os efeitos de segunda ordem que a eventual flexibilização do teto traria na economia. A taxa de juros provavelmente subiria, o PIB cresceria menos, impondo outra trajetória para a dívida. A linha vermelha ilustra um cenário de trajetória explosiva da dívida. Esta supõe os mesmos 1% de crescimento real das despesas, porém com taxa de juros real mais alta de 4% a.a (ao invés de 2%) e crescimento do PIB mais baixo de 1.5% a.a (ao invés dos 2.6%). Estas pequenas mudanças fazem toda a diferença.
Para entender por que a flexibilização do teto poderia levar a juros mais altos e crescimento mais baixo vale inverter a pergunta: Qual é o papel do teto para garantir um ambiente de juros baixos e recuperação do crescimento no Brasil?
Até o final do governo Dilma em 2016 a economia brasileira vivia um ciclo “vicioso” de ajuste. Depois de anos de excessos de gastos e estímulos para manter sua popularidade, o governo se viu obrigado a impor um ajuste fiscal brusco na economia, capitaneado pelo então ministro Joaquim Levy. A ideia de que este ajuste traria de volta a confiança dos investidores se mostrou frágil. Em um ambiente de elevada incerteza política o ajuste, só mostrou o seu lado “ruim” de reprimir a economia. Como não havia certeza sobre sua perenidade (o governo iria voltar atrás e gastar?), o ajuste não foi capaz de recobrar a confiança do agentes econômicos. Com crescimento baixo e juros altos, a dívida pública caminhava para uma trajetória claramente explosiva.
Com a mudança de governo naquele ano, a nova equipe econômica seguiu outra estratégia. Ao invés de buscar um ajuste brusco, a ideia seria garantir que este acontecesse de forma gradual e perene na próxima década, independentemente de quem estivesse no poder. Como fazer isso? Escrevendo-o na constituição federal. Congresso e Executivo se viriam obrigados a fazer escolhas todos os anos, cortando determinados gastos para acomodar o crescimento de outros. Com isso, os juros puderam cair para um padrão mais “civilizado” olhando outros países. Caíram inclusive mais do que quase todos os economistas imaginavam.
Com juros estruturalmente mais baixos, um novo equilíbrio macroeconômico se desenhava. De um lado, a taxa de câmbio mais depreciada por efeito dos juros baixos aumentaria a competitividade do setor exportador e da indústria local. De outro, os investimentos em setores mais sensíveis a taxa de juros, como construção civil e infraestrutura teriam tudo pra decolar. As condições estariam postas para um novo ciclo de crescimento nos próximos anos. Crescimento este que reforçaria a percepção de solvência da dívida, consolidando o processo de queda dos juros. Assim resumiríamos nosso otimismo com a economia para os próximos anos. Uma eventual mudança do regime fiscal colocará este ciclo virtuoso em xeque, e a reação dos mercados nos últimos dias foi bastante indicativa disto.
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